Brasília, sexta-feira, 10 de setembro de 2004
Reinventando a vida
Professor de Ceilândia cria uma espécie de triciclo e dá novo sentido à existência de cinco alunos com deficiência física (Marcelo Abreu - Da equipe do Correio)
No meio de uma greve daquelas — entre discussões acaloradas, outras
patéticas e algumas perfeitamente dispensáveis, onde se contam
até problemas domésticos e frustrações pessoais
— um garoto sem os dois braços e uma das pernas atrofiadas cruza
o caminho daquele professor de Matemática. O menino vinha numa cadeira
de rodas, empurrado pela mãe. Era maio de 2002. O professor parou para
ver aquele garoto. Ficou perplexo. Segurou as lágrimas. E se perguntou,
intimamente, como se quisesse entender melhor o sentido das coisas:
— A gente aqui discutindo tanta coisa inútil, reclamando de bobagens
e esse menino nos dando lição de vida...
O professor correu em direção ao garoto. Queria saber quem era
aquele aluno, até então desconhecido. E num átimo, lhe
prometeu:
— Vou fazer alguma coisa que lhe faça andar sem cadeira de rodas.
Você vai conseguir...
foto de Paulo H. Carvalho
Os jovens alunos de Emerson são só alegria depois que ganharam
o triciclo: possibilidade de se locomoverem sozinhos pelas ruas da cidade
O menino olhou aquele homem desconhecido prometer algo completamente inusitado.
Não disse nada. Duvidou até. E voltou para casa, na mesma cadeira
de rodas, empurrado pela incansável mãe.
Sete dias depois, o professor chegou à casa daquele menino, na QNM 8
de Ceilândia Norte. Levou o aparelho que havia criado, gastando tempo
e dinheiro próprios. Era um triciclo — uma espécie de bicicleta
com três rodas. Como não tem braços e usa apenas uma perna,
o invento foi feito exatamente para que o aluno conseguisse comandá-lo
apenas com uma perna. Deu certo. O invento, depois da burocracia dos órgãos
competentes, foi patenteado naquele mesmo ano.
Há dois anos, Saulo Moreira Pereira, 18, teve sua vida completamente
mudada. Aposentou a cadeira de rodas. Hoje, vai e volta ao Centro de Ensino
Fundamental 20, em Ceilândia Norte, sem ajuda de ninguém. Pela
primeira vez, em toda a vida, sentiu-se responsável por si mesmo.
A história se espalhou. O invento de Emerson Teixeira de Andrade, de
32 anos, andou, literalmente. Hoje, dois anos e seis meses depois, mais quatro
pessoas, todas carentes — entre elas uma moça — usam os triciclos
do professor. Cada um com uma deficiência física e motora específica.
Há quem tenha braços, mas só consegue usar as pernas, às
vezes só uma das pernas. Há quem tenha pernas, mas só tem
forças nos braços. Às vezes também só movimenta
um dos braços. E tudo foi produzido em Ceilândia, sob medida, na
serralheria do seu Joaquim, um homem que entrou na campanha pela melhor qualidade
de vida daquelas pessoas.
A última que ganhou o triciclo foi a estudante Shirley Ferreira da Silva,
de 24 anos. Os professores da escola se cotizaram e viabilizaram a fabricação
do seu triciclo. No dia 31 de agosto, no aniversário dela, a grande surpresa.
O professor Emerson chegou à escola com a bicicleta de três rodas.
Detalhe: toda cor-de-rosa e com cestinha para carregar os livros.
Ela, que andava em cadeira de rodas, agora esnoba independência no seu
triciclo. É verdade que ainda teme quando tem que passar por um quebra-molas,
mas logo se acostumará. ‘‘Só preciso ter mais coragem...’’
Cena emocionante
Quando chegou à casa de Saulo, há dois anos, para levar o primeiro
triciclo que inventou, o professor esperou para ver como seria a reação
do garoto. Se ele conseguiria, de fato, andar em cima daquilo. ‘‘Foi
a cena mais emocionante que já tive na vida. A mais espetacular’’,
confessa Emerson.
E lá o menino subiu no triciclo, colocou a perna que lhe garante movimentos
para comandar o aparelho e saiu pelas ruas da cidade. Nunca mais parou. ‘‘Ele
anda a Ceilândia toda. Não pára mais quieto’’,
extasia-se a mãe de Saulo, Maria de Jesus Moreira Pereira, de 44 anos.
Saulo apenas ri. Emerson, o professor, deixa o silêncio responder por
ele.
Ali, entre os garotos e a garota que usam os triciclos inventados pelo professor,
o clima é de felicidade. João Henrique de Sousa Silva, de 15 anos,
anda nas nuvens. Movimentando só as mãos, é nelas que o
rapaz impõe sua força. ‘‘No início, pensei
que não fosse ser capaz. Hoje, vi que posso. Minha vida melhorou cem
por cento’’, vibra.
Cada vez, o invento do professor Emerson ganha detalhes mais modernos. Vira
uma máquina de três rodas. Que o diga William Nunes, de 22 anos.
A ‘‘máquina’’ dele está equipadíssima.
Tem até som adaptado. O rapaz circula a Ceilândia ouvindo seus
raps preferidos. E tem conquistado corações.
Como Shirley anda meio receosa com os quebra-molas, William tem se oferecido
para lhe dar dicas de como usar o triciclo. E, claro, ouvir seus raps. Tímida,
ela apenas sorri. Ouvindo tanta descontração e uma gente que reaprendeu
a ter o gosto pela vida, o professor Emerson se entusiasma com a lição
que tem recebido dos seus alunos.
Planos para o futuro
Com a auto-estima para lá de elevada, os cinco amigos humildes de Ceilândia
fazem planos para o futuro. Saulo, filho de um mestre-de-obras, quer ser advogado.
‘‘Fico triste quando vejo pessoas como eu que não conseguem
ser livres, decidirem pelo seu destino’’, diz ele. João Henrique
quer chegar à faculdade de Engenharia de Redes. ‘‘Ou de Oceanografia’’,
emenda.
Shirley ainda não escolheu a profissão. Por enquanto, só
tem um desejo: arrumar um emprego no horário em que não estiver
na escola. ‘‘Quero mostrar pra todo mundo que sou capaz. Eu posso
fazer as coisas. Só preciso de uma chance...’’ O trepidante
e animado William, por hora, só quer mesmo curtir seu rap. E nunca esteve
tão feliz com seu triciclo equipado. ‘‘Você vai colocar
no jornal que ele tem música, né?’’, perguntou, como
menino embevecido que acaba de ganhar um presente novo.
E os sonhos do professor Emerson, o responsável por toda essa história?
‘‘Apenas fazer mais por quem precisa, com vontade de ajudar, sem
limites. A gente sempre pode. E eu farei mais...’’
“ Foi um cascudo de Deus”
Ele não pára. Fala rápido. Anda rápido. Corre de
um lado para o outro para poder atender às centenas de alunos e às
duas escolas onde dá aula — o Centro de Ensino Médio 4,
de Ceilândia Sul, e o Centro de Ensino Fundamental 20, Ceilândia
Norte. Tem uma carga horária pesada: são 60 horas semanais. E
um salário inversamente desproporcional ao desgaste e responsabilidade:
R$ 2,6 mil.
Morador de Ceilândia, o professor Emerson Teixeira de Andrade tem 32 anos
— dos quais cinco dedicados ao magistério. É casado pela
segunda vez e pai de dois filhos — um de seis anos e outro de dez meses.
Desde o dia em que viu Saulo pela primeira vez, durante aquela greve em 2002,
sentiu que sua vida havia mudado. Impressionou-se com a capacidade daquele menino
— mesmo sem os dois braços e apenas uma perna — de dar a
volta por cima. Saulo escreve com o pé. Alimenta-se com o pé.
Joga xadrez com o pé. E hoje voa pela Ceilândia toda a bordo de
um triciclo inventado pelo professor.
Sem querer, Saulo ensinou uma lição de vida a uma gente que, naquela
greve, discutia reposição salarial, perdas e ganhos financeiros.
E mais uma e outra coisa. Uma ou outra picuinha. Às vezes sem nenhuma
relevância.
‘‘Quando vi o Saulo, senti que podia fazer alguma coisa por ele.
Que todos nós podemos fazer alguma coisa. Foi um cascudo de Deus. E dos
bem dados’’, emociona-se o professor.
E Emerson fez. Já construiu cinco triciclos. E virão mais. ‘‘Pelo
menos uns cem’’, brinca ele. (MA)
foto de Paulo H. Carvalho
Emerson trabalha 60 horas por semana, mas não se cansa. Quer construir
ainda muito mais triciclos
CONTATOS
Quem quiser se comunicar com o professor Emerson de Andrade pode acessar o site
www.osteixeiras.com.br